quarta-feira, novembro 26, 2008

Desvenda a vida

- Põe esta venda nos olhos, quero levar-te a um sítio especial. Mas não poderás saber o caminho pois é um lugar secreto…

- Ó senhor Pedro, não achas que estás a exagerar? – retorquiu a Maria deixando escapar nos contornos da face o seu ar curioso.

- Vais ver que não. Até lá chegarmos vou contar-te uma história e perceberás o porquê deste nosso passeio.

- Quando eu era pequenino a minha avó adorava passear comigo. E eu amava ir com ela pelo meio do pinhal com a Judi, o pastor alemão da família, a apanhar pinhas, malmequeres, rosmaninho, alecrim…

- Lavanda! Adoro esse cheirinho…

- Sim, lavanda também se apanhava mas era mais raro. Levávamos sempre o saco de serapilheira que enchíamos com caruma e lenha para a fogueira e as pinhas eram o entretém de talvez duas horas, a abri-las à procura de pinhões.

- Aqueles colares que compramos no verão às senhoras da praça?

- Sim filha, esses. Como vês, não seria necessário comprá-los porque a natureza dá-nos os pinhões. Bastava ser paciente e procurar.

- Mas dá muito trabalho!... Os da senhora são só pagar e comer! E além disso em Lisboa não há pinheiros!...

- Pois é, tens toda a razão. Mas ia eu a dizer… – e a Maria interrompe-o.

- …que iam ao pinhal buscar a lenha… Ó pai, já contaste essa história tantas vezes! Já sei a história de cor.

- Eu sei, porém hoje gostava que me ouvisses com mais atenção.

E quarenta minutos se passaram desde que Pedro e a filha começaram a caminhar por traçados irregulares. As folhas secas a estalar com as pisadas e o perfume das árvores já os acompanhavam há uns largos metros quando a Maria, adolescente irrequieta, começou a dar mostras da sua impaciência:

- Mas pai, vais-me levar onde? Já estou cansada de ir com os olhos vendados! Cheira bem, onde estamos? Quero ver!...

- Mais um bocado, filha. Estamos a chegar. A um sítio onde sei que qualquer pessoa poderia ser feliz pois aqui só há paz. Aqui não funcionará o teu telemóvel, e o sistema de orientação do carro não detecta estes caminhos. Aqui não há câmaras nem Internet. Não há barulho nem poluição, logo não há carros nem motas. Não há esgotos porque não vivem aqui pessoas. É um lugar puro, virgem e por explorar. Maria, princesa, o pai trouxe-te aqui hoje para que saibas que lugar é este, para que saibas que a beleza existe e a paz acontece. A vida não é só feita de prédios, de cinema, bares, carro e viajar de avião. Não filha, viver tem também esta vertente da preocupação com o sítio onde vivemos. Porque nem tudo na vida é triste e cinzento como a solidão de Lisboa, a palavra tristeza não faz sentido neste lugar. Tira a venda e deixa-te embalar.



sexta-feira, novembro 14, 2008

Cordão Umbilical

Amo-te. Adoro-te. Respeito-te. És a coisa que mais estimo neste mundo embora ás vezes não saiba como o demonstrar. As palavras por vezes ficam por dizer e sinto agora que há muita coisa que te deveria ter dito sem ter medo de ser castigada ou repreendida. Pelo menos teria feito a minha parte. Mas na altura tu não me irias dar ouvidos, ou pelo menos não os ouvidos de ouvir que eu queria que desses.
Sempre fui espectadora atenta da tua vida. E tu sabes tão bem quanto eu que nunca deixei de demonstrar aquilo que achava bem ou mal. Fi-lo por ser quem sou na tua vida. Amo-te. Na medida das minhas capacidades enquanto membro secundário da tua vida privada tentei sempre alertar-te para as coisas que achava mal. Porque apesar de secundária na tua vida pessoal sentimental, sou principal na tua vida. Para sempre. Por vezes pensei: mas quem és tu, pirralha, para te meteres na vida que não é a tua? A resposta é fácil. Sou quem te ama e te adora e te respeita, venha o que vier (e já muita coisa veio).
As coisas que foste fazendo ao longo do tempo, tempo esse em que eu já tinha olhos de ver, ouvidos de ouvir e coração de sentir, fizeram com que eu sentisse a necessidade de ser a tua sombra. Por vezes fui o teu anjo da guarda. Por vezes fui a tua mãe. Por vezes fui a tua tábua das lamentações sem nunca deixar de ser aquilo que na verdade te sou. Fiz as asneiras e fui repreendida. Fiz as experiências e tu acompanhaste-as. Ensinaste-me a ser o que sou hoje. Eu protegi-te com todas as armas que fui tendo, levantei-te com todas as forças que fui ganhando e, pelo bem e pelo mal, a tua vida ensinou-me a viver.
Em nenhum relato da história se ouviu falar na obra-prima que mudou o mestre. Eu tentei desafiar a história e tentarei sempre pois esse é o meu dever enquanto tua criação. Quero ajudar-te (ou pelo menos tentar), aconselhar-te (ainda que não seja essa a lei normal das coisas), apoiar-te (ainda que o faça naquilo que quero contrariar), retribuir o carinho que me dispensaste, a atenção que me deste, os cuidados que comigo tiveste. Quero retribuir todo o amor. O tempo urge, a vida é efémera e vejo os dias a diluirem-se com a noite. Quero-te com urgência mais perto de mim. Enquanto vida existir quero poder espremer cada segundo contigo.
Volta.

quinta-feira, novembro 13, 2008

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"Livre não sou, que nem a própria vida

mo consente.
Mas a minha aguerrida
teimosia
é quebrar dia a dia
um grilhão de corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino. (...)"


Miguel Torga